Influência do juro alto na economia brasileira, revela criador do Plano Real
O engenheiro e economista Winston Fritsch, 77, um dos idealizadores do Plano Real, recebeu o convite de Fernando Henrique Cardoso para trabalhar na equipe que estabilizaria a inflação em 1994 a partir de um telefonema de Washington, atendido na piscina de sua casa na serra fluminense. Num sábado.
No domingo, estava em Brasília com Gustavo Franco e Edmar Bacha para começar a montar o plano.Winston Fritsch, um dos “pais do Plano Real”, em seu apartamento no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro.
Fritsch como secretário de Política Econômica, Franco como seu adjunto, e Bacha como assessor especial do Ministério da Fazenda.
Na época, diziam que o plano poderia ser o oitavo casamento da atriz Elizabeth Taylor (1932-2011), famosa por seus vários matrimônios.
O Brasil tinha tentando outras vezes: planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor, alguns com mais de uma versão —mas todos fracassados.”Caramba! Não foi um truque. Funcionou!”, lembra.
“O plano resolveu e derrubou a inflação de forma consistente.” Fritsch diz, no entanto, que o Real, com 30 nos de existência, deixou alguns “unfinished business” (negócios inacabados), como a questão fiscal que atormenta a economia brasileira até hoje.
Segundo ele, as crises internacionais enfrentadas pelo ex-presidente FHC (1995-2002) atrapalharam, mas que não foram poucas as conquistas e reformas do período. Fritsch faz um retrospecto dos últimos anos no Brasil, a partir do Plano Real, e diz ter esperança de que o governo Lula (PT) ainda possa surpreender positivamente.
A economia brasileira vive altos e baixos, crises periódicas e amarga taxas de crescimento medíocres para um país com tanta pobreza, potencialidades e tarefas à frente.
Como avalia o lançamento do Plano Real à época e o que precisa ser feito?Melhoramos em vários aspectos, mas os problemas estruturais seguem latentes.
O Real deixou alguns “unfinished business” (negócios não resolvidos). Uns estruturais; outros, de manutenção. A política fiscal pode ser entendida como problema estrutural.
Pois temos um sistema muito ineficiente, cheio de band-aids. E o equilíbrio fiscal é algo que vamos ter de buscar sempre.O Real foi uma coisa absolutamente espetacular do ponto de vista da redução da inflação.
Mas teve uma dependência muito grande, para a manutenção da estabilidade, na taxa de câmbio, na âncora cambial. E numa situação frágil, porque tínhamos reservas cambiais muito baixas, cerca de um décimo do que há hoje.Isso em uma economia internacional extremamente instável nos países em desenvolvimento.
Na saída [do lançamento do plano], crise no México. Depois, Coreia, sudeste da Ásia e, por fim, a Rússia. Toda vez que isso acontecia, a única forma de manter o balanço de pagamentos relativamente forte, para não ter pressões sobre o real, era usando a taxa de juros como instrumento, mexendo no diferencial de juros.
É como se você tivesse um cavalo que quisesse correr, mas toda hora você tinha que segurar o freio porque vinha uma pinguela.Mas as expectativas de investidores, depois do Plano Real, eram espetaculares.
E foram feitas reformas também, com uma coalizão governante razoável. No governo do Fernando Henrique, o presidencialismo de coalizão funcionou. Não dava para fazer reforma constitucional muito fácil, mas para passar leis, não precisava falar com ninguém.
E as reformas foram sendo feitas, algumas muito importantes. O Fernando Henrique tinha um porrete grande. Ele privatizou a Vale!Também fechou ou privatizou cerca de 30 bancos estaduais, deficitários e fontes inflacionárias à época.Exato. Ou seja, essas reformas estruturais foram feitas, mas a economia perdeu, digamos, o espírito animal dos empresários.
Na saída do plano, as expectativas estavam muito elevadas, com todo mundo achando que “agora o Brasil vai”. Mas acabou que, poxa, o juro alto… A economia ficou no voo de galinha de sempre.Winston Fritsch, então secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda em 1994, ano do lançamento do Plano Real.
Houve ainda um aumento importante da carga tributária para tentar controlar o déficit fiscal, mas não um ajuste estrutural do Estado, certo?.
Sim, não se fizeram algumas reformas estruturais. E foi se perdendo quase que continuamente aquele ambiente do pós-Real, que era muito positivo. Porque era uma crise atrás da outra.
E o Banco Central com o instrumento, basicamente, de subir os juros. Porque o objetivo era a inflação, era mantê-la sob controle. Mas o crescimento foi medíocre. E aí vinha uma eleição ainda por cima, que é a segunda eleição do Fernando Henrique.
Então, o Banco Central não pôde subir o juro muito antes. Perdeu-se um tempo. E, aí, teve uma saída gigante [de capital internacional] em 1999.
O Fernando Henrique venceu a eleição, mas quase perdeu o Real.Mas depois veio o Armínio [Fraga, ex-presidente do BC] e passamos para um regime de câmbio flutuante. Isso foi muito importante porque deu ao real o status de uma moeda de país grande.
O BC era bem tocado, usando a taxa de juros como instrumento de controle da inflação e com uma promessa de ajuste fiscal. Na verdade, houve um band-aid fiscal durante o Armírio, a CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira], que deu uns 3% do PIB [de arrecadação].
Qual a sua avaliação sobre o que veio depois do Fernando Henrique, do que ele não fez e as bases que deixou? Lula vence a eleição em 2002 e faz dois mandatos de sucesso, com taxa de crescimento praticamente o dobro de FHC. Lula herda uma economia ajustada, mas ainda com déficit fiscal estrutural.
Mas o Lula tem uma grande vantagem, que é a sorte. Tivemos a China, que passou a crescer exponencialmente, chupando comida do agro brasileiro.
Essa mudança, que é muito a China na globalização, fez o Lula surfar.Em 2005, 2006, ele deixa as reservas subirem, mas mesmo assim o câmbio aparecia, e chega a quase US$ 1 para R$ 1 de novo, o que teve um efeito deflacionário espetacular.
E as reservas passam de US$ 50 bilhões para quase US$ 300 bilhões de hoje. Ele tira, digamos assim, o perigo imediato da instabilidade de nossa economia periférica.
Depois, vem a Dilma.Agora, antes do Lula, o mau desempenho do Fernando Henrique se deve exclusivamente a ter que dirigir numa estrada que só tinha buraco, as crises internacionais.
E você tinha um carro [o Plano Real] com amortecedor fraco. Mas o tempo correu a favor. Na medida que passou um ano, dois, três anos e a inflação baixou… Caramba! Não é um truque. Resolveu.
O sr. fala na estrada esburacada do Fernando Henrique e num certo céu de brigadeiro com Lula. Mas o cavalo de pau desse caminho, que estava mais ou menos organizado, foi o governo Dilma [Rousseff – 2011-2016], não?Mas aí temos de sair da economia e olhar a política.
O que acontece é o governo Fernando Henrique tinha um projeto de reforma e uma coalizão para governar. Quando o Lula é eleito, o presidencialismo de coalizão colapsa. O PT nunca teve mais de 20% dos votos na Câmara dos Deputados.Ele sempre teve que cair na mão do espectro mais à direita.
E aí, antes de você entrar na direita mais ideológica, que no Brasil só apareceu mesmo depois do [Jair] Bolsonaro, você cai no meio dos lobbies. O miolo, o centrão, é lobby.
É muito difícil fazer alianças assim.Só que o Lula foi ficando muito popular, porque a economia estava muito boa, e deputado não briga com presidente popular. Ele carregou 80% de popularidade por muito tempo, um negócio de maluco. Então, o centrão e todo mundo votavam com o Lula.
O Lula era um rei, um rei querido.Aí ele faz a Dilma, que foi claramente uma rolha, porque ele queria voltar em quatro anos. Mas a Dilma pegou uma crise pela frente.
No início, a grande crise [internacional] de 2009 não afetou tanto o Brasil, mas depois [já no governo Dilma] veio a turbulência mais séria mesmo, na Europa.Aí entra um time [econômico] que, pô, é completamente alucinado.
Quando tinham que dar uma segurada, meteram o pé no acelerador, levando a um desastre pouco depois. Ela acaba sofrendo o impeachment.
O fato de ela não ser uma política minimamente competente foi um desastre. Meteu o pé pelas mãos ali, gastando, pedalando, e o que seja. Foi patético. Foi perdendo completamente a confiança do mercado. Só piorava. E o Congresso reagiu. Tempos depois, aquela confusão toda deu no Bolsonaro.
Seguindo esse arco histórico, temos o governo Michel Temer [2016-2018], de transição, e Jair Bolsonaro [2019-2022]. Agora, Lula 3.
Como avalia a conjuntura atual?O Lula foi eleito por uma margem muito pequena. Há muita crítica. Mas, a meu ver, está fazendo um negócio muito bom na área de transição energética.
E tem uma popularidade internacional enorme. Mas, como no Brasil ele não está popular, e tem que governar com o Congresso, precisa cuidar para não perder o lustro, pois pode acabar sendo “jogado fora” [pelo Congresso].
Ainda mais num ambiente radicalizado como o que a gente está hoje, algo que nunca teve no Brasil. E a economia internacional, embora não esteja tão ruim, também não está boa.
Agora, o Brasil tem hoje uma chance espetacular de crescer com base em investimentos verdes, e tem uma outra possibilidade, que é crescer exportando petróleo.
Os saldos comerciais têm sido grandes. Temos um déficit em conta corrente [nas transações com o mundo] de cerca de 1% do PIB, que conseguimos financiar com capital externo, se fizermos as coisas bem feitas.
Há muita crítica, mas creio que o Brasil vai recuperar o “investment grade” [grau de investimento, perdido em 2015]. E pode ser até no governo Lula. Porque o “investment grade” depende muito do risco de “default” (calote internacional), do balanço de pagamentos.
O Lula ainda pode surpreender. Mas o calcanhar de Aquiles continua sendo o fiscal, não?Mais ou menos. Claro que as projeções não são boas, como não são em quase nenhum país do mundo. A Covid teve impacto profundo. Olha os Estados Unidos [com déficit primário de 5,5% em 2023].
O [Fernando] Haddad está fazendo um discurso que ninguém pode dizer que é o da Dilma.E não se pode dizer que os juros estão onde estão por causa do fiscal.
É por causa do choque da inflação pós-Covid. A resposta do Banco Central, independente, foi dada um ano antes dos Estados Unidos, e foi muito violenta.
Mas funcionou.Só que, agora, para baixar, começa o lero-lero de, pô, olha o fiscal. Mas não foi o fiscal que fez a taxa subir. Foi o choque exógeno da inflação.
E com os juros americanos de curto prazo a 5,5%, não dá para baixar muito por aqui. Se baixa muito no Brasil, tem êxodo de capital, o dólar vai para o espaço.
É o que está acontecendo.Toda vez que aparece a ideia de que o juro vai cair, o dólar sobe. Virou uma espécie de armadilha. Porque veio a crise, o juro subiu.
Os americanos subiram, e temos agora um patamar que é dado pela conta de capital, não mais pela economia interna. Então, tem que ficar esperando o Fed [o BC americano] baixar o juro para a gente ir atrás.
Agora, o juro está alto por causa do fiscal? “Bullshit” [bobagem]. Está alto pela taxa do Fed a 5,5% ao ano. Mas aparece todo o discurso conservador da Faria Lima.
É claro que você tem que ter um déficit primário baixo, mas não precisa ser zero. Tem países que tem déficits primários muito maiores que o Brasil e estão funcionando.RAIO XWinston Fritsch, 77.
Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo FHC e participou da equipe que formulou o Plano Real.
Com diploma de bacharel e mestrado em engenharia pela UFRJ, é PhD em economia pela Universidade de Cambridge. Conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), tem longa experiencia no setor financeiro como sócio, CEO ou diretor de instituições brasileiras e internacionais.
Atualmente, dedica-se ao ensino e empreendedorismo na área de financiamento da transição ao baixo carbono.
A Folha publica ao longo deste mês a série Plano Real, 30, com reportagens e entrevistas sobre as três décadas desde o lançamento de medidas que dominaram uma inflação de quase 5.000% ao ano.
A pressão do aumento de preços e o equilíbrio das contas públicas, duas questões que estiveram no centro do programa de estabilização, ainda dominam o debate econômico.